
Somos todos donos da rua
Entenda o que são ruas compartilhadas e como elas relacionam a sociedade com os equipamentos urbanos.
Ler maisImagem: Torre de Babel, pintada por Pieter Bruegel (arthistoryproject.com)
“Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.”
João Cabral de Melo Neto.
O pintor renascentista Pieter Bruegel, ao representar a sua Torre de Babel (1563) sabiamente evidenciou a presença do rio, das embarcações e do porto como suporte à construção da torre monumental, que elevaria o homem aos céus.
De fato, a água é um denominador comum entre a pintura de Bruegel, as nossas cidades contemporâneas, bem como as primeiras cidades desenvolvidas pelos humanos, entre 15.000 e 5.000 anos atrás.
Não importa ser São Paulo, Paris, Roma, Londres ou Mênfis, às margens do Nilo, bem como Ur, no vale fértil da Babilônia. É extensa a lista de cidades que se desenvolveram pela proximidade com algum curso d’água. Seja um rio, um lago, ou até mesmo o mar, no caso das cidades litorâneas, a presença da água sempre teve papel de destaque na história das civilizações.
A própria forma dos espaços onde ocorre a gênese urbana tem relação direta com a borda d’agua; os espaços de ocupação inicial das cidades foram concebidos sobre a necessidade de uso da água como principal modo de abastecimento e transporte, definindo funções essenciais para a manutenção da vida urbana.
Imagem: Mapa antigo de Paris (pinterest.com)
Em particular na história dos rios urbanos – os rios que hoje percorrem internamente o perímetro urbano das cidades – podemos observar dois momentos distintos. No passado, eles constituíam marcos territoriais e paisagísticos, contribuíam para a produção de alimentos, e serviam como corredores de transporte de cargas e pessoas. Eram espaços públicos livres, geradores de energia, dentre outras funções.
Quando navegáveis, os rios também faziam a porta de entrada para as cidades; vale lembrar que faz relativamente pouco tempo (aproximadamente 100 anos) que temos os carros à nossa disposição. Antes disso, outras eram as formas de deslocamento e o transporte fluvial era uma alternativa viável, prática e econômica.
É com o avanço da tecnologia e da urbanização, concomitante ao surgimento de novas formas de transporte, que tem início então, um longo processo de mudança, onde gradativamente as cidades foram dando as costas para seus cursos d’água.
Muitos rios foram canalizados, outros jogados para o subsolo sob camadas de concreto. Em alguns casos, como por exemplo, o rio Tietê, em São Paulo, o potencial de transporte foi direcionado às margens, hoje ocupadas pelas faixas de rolamento da sua Avenida Marginal homônima.
Imagem: Marginal do Rio Tietê (spcity.com.br)
Temos constantemente alterado, de forma bastante agressiva, o cenário dos rios urbanos, tornando-os obsoletos. Para várias cidades o rio se torna um empecilho, um elemento que corta e divide a urbe, aumentando assim as distâncias de deslocamento e gerando pontos de conflito de mobilidade.
Com as atuais soluções de saneamento urbano, os rios acabam também sendo fonte de mau cheiro, claramente se tornando um elemento indesejado na paisagem urbana. É extremo o contraste entre os rios que originalmente eram sinônimo de vida, mas que agora majoritariamente carregam o peso da morbidez.
É claro que não queremos fazer generalizações. Existem cidades que ainda preservam forte relação com o meio natural e podem sim manter essa relação por muito tempo. Mas, por outro lado, observa-se que muitas estão perdendo o vínculo com seus rios, apresentando espaços sem vida, ociosos, subutilizados e descaracterizados.
Algumas cidades já estão apresentando soluções voltadas à essa requalificação ambiental e urbana. É o caso, por exemplo, de Madrid, na Espanha. Em 2005, foi realizado um concurso de projeto para eleger uma proposta de requalificação para as margens do rio Manzanares.
Imagem: Requalificação do rio Manzanares, em Madri (pinterest.es)
A proposta vencedora maximiza o potencial paisagístico do rio, alocando a rodovia M30 para o subterrâneo pela extensão de 6.000 metros em ambas as margens do rio. No lugar da rodovia, estabelece um parque linear com aproximadamente 253.000m².
Com o parque, os madrilenos têm às margens do seu rio novas áreas de lazer, quadras de esporte, espaços públicos de estar e recreação. Além disso, novas pontes e passarelas para pedestres criam conexões entre as margens, tornando mais fácil o deslocamento e diminuindo o rio como barreira.
Espaços que valorizam a urbanidade das margens do rio, integram-no com a cidade, e valorizam as pessoas.
Apesar do exemplo europeu, não precisamos necessariamente cruzar o Atlântico em busca de soluções. É o caso do Parque Urbano da Orla do Guaíba. Uma proposta que faz uso da arquitetura e do paisagismo para solucionar os problemas de abandono e insegurança daquela área, celebrando assim, o rio como patrimônio e o potencial cênico da paisagem.
Imagem: Orla do rio Guaíba, em Porto Alegre (pinterest.com)
Existe um valor poético dos espaços à borda d’água, sua relação com a urbe e o simbolismo que este elemento transmite para as pessoas. A água habita o imaginário coletivo e a necessidade de qualificar orlas aquáticas aplica-se em busca de um diálogo harmonioso entre meio urbano e natural.
Então, por que não usamos adequadamente nossos rios urbanos? Por que não aproveitamos seu potencial primário como meio de transporte em busca de aliviar nossas ruas e avenidas já tão congestionadas, incorporando ideais de uma mobilidade urbana alternativa, sustentável e intermodal?
Imagem: Canal de Amsterdã, na Holanda (wikipidia.org)
Além disso, ao admitirmos o mérito dos espaços públicos para contribuir com a qualificação do espaço urbano, considerando a ausência de área disponível em muitas cidades brasileiras para a criação destes espaços, as orlas dos rios urbanos devem ser tratadas como potenciais espaços públicos que possuem aptidão para (re)qualificar suas áreas adjacentes. (E por falar em requalificação de áreas públicas, não deixe de ler nosso texto sobre ruas compartilhadas e democratização dos espaços urbanos. É só clicar aqui).
Em nossas cidades de asfalto e concreto, precisamos usar os rios novamente. Tê-los em nosso cotidiano. Caminhar suas margens, contemplar o movimento da água. Olhar para eles, todos os dias, mais uma vez.
Maria Cecília Barbieri Gorski. Rios e Cidades: ruptura e reconciliação. Editora Senac, 2010.
Archdaily Madrid Rio. https://www.archdaily.com.br/br/883041/intervencao-urbana-transforma-margem-do-rio-em-area-de-convivio-publico-em-madri
Por Tueilon de Oliveira
Entenda o que são ruas compartilhadas e como elas relacionam a sociedade com os equipamentos urbanos.
Ler maisVocê sabe o que é arquitetura? Também não é fácil para nós, arquitetos, definir o exercício da nossa profissão, mas esse texto é uma tentativa. Leia e nos conte o que você achou!
Ler mais