
Somos todos donos da rua
Entenda o que são ruas compartilhadas e como elas relacionam a sociedade com os equipamentos urbanos.
Ler maisVocê certamente já olhou à sua volta, nas diferentes cidades em que andou, e deve ter observado elementos comuns a todas elas: edifícios públicos, centros comerciais, casas, prédios, parques e praças. Não importa a escala: sejam grandes centros como Londres, São Paulo e Nova Iorque ou pequenas cidades, todos os municípios possuem características semelhantes no que diz respeito ao planejamento urbano.
Essas semelhanças, no entanto, não acontecem por acaso. O planejamento e desenvolvimento das cidades fazem parte de redes complexas, que demandam a articulação de diferentes setores. Elaborar uma política de planejamento urbano envolve organização em outras esferas como social, ambiental, política, econômica, dentre outras. (Em um texto recente do blog, discutimos a importância do planejamento das ruas de uma cidade. Para ler, clique aqui).
Imagem: (pexels.com)
Mas existe uma espécie de conjunto de diretrizes que regulam o crescimento e desenvolvimento de uma cidade. Essa ferramenta é denominada de Plano Diretor.
O Plano Diretor estabelece diretrizes e estratégias para a execução de programas e projetos e desempenha um papel fundamental para a regulamentação do território de uma cidade. O Plano Diretor é um instrumento que norteia a política de desenvolvimento e expansão urbana, orientando a ação dos agentes públicos e privados.
Essas diretrizes regulam demarcação de áreas urbanas, zoneamento, parcelamento e alteração de uso do solo, regulamentações referentes à infraestrutura urbana, disposições relativas ao direito de construir etc. É de extrema importância que esse instrumento do planejamento urbano seja conhecido não apenas pelos gestores públicos e profissionais da área de arquitetura e urbanismo, mas também pela população urbana em geral.
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O cumprimento das diretrizes expostas no Plano Diretor é fundamental para que o município cresça em consonância com as regras estabelecidas e que a cidade mantenha um desenvolvimento urbano controlado e ordenado.
Mas seu alcance sob a cidade vai muito além do que se imagina: o Plano Diretor e a legislação na arquitetura acabam influenciando fortemente o volume e a forma de grande parte das edificações. Toda cidade tem restrições ou normas construtivas que acabam se tornando uma assinatura das suas construções. E assim, essas edificações vão criando uma identidade regional que rege as espacialidades.
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A arquitetura está em constante mudança, assim como as cores, revestimentos e materiais. Mas isso não significa dizer que a disciplina não lance tendências de elementos e soluções recorrentes, em termos de materiais, programas e funções.
O que acontece, no entanto, é que muitas dessas tendências, que posteriormente viram preferência, não nasceram por questões estéticas ou funcionais. Existem tendências arquitetônicas que surgiram a partir de uma tentativa de adequar a construção às regras impostas pelo Plano Diretor. Esse é o caso das varandas gourmet em São Paulo, que começaram a ser projetadas como uma adaptação às leis que restringiam o que podia ser construído em um condomínio.
No caso da capital paulista, uma lei foi sancionada em 13 de setembro de 2002 que fazia algumas restrições ao Plano Diretor da cidade, especificamente na taxa de ocupação e no coeficiente de aproveitamento das novas edificações, ou seja, o quanto de área adensável (área máxima construída) seria permitida para cada terreno.
Como as ‘varandas gourmet’ não contam como área construída do terreno, colocar essa grande sacada com churrasqueira – que posteriormente será envidraçada pelo novo proprietário – se tornou uma saída legal para vincular esses espaços à área social do apartamento, sem descumprir as regras do Plano Diretor.
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Mas engana-se quem pensa que a influência da legislação na arquitetura é um acontecimento recente. Em Londres, no século 17, habitantes da capital inglesa modificaram a estética de suas moradias tapando, da forma que conseguiam, algumas janelas de suas residências.
Isso se deveu a um imposto, conhecido como window tax, que a cidade cobrava dos moradores. A taxa era aplicada de acordo com (pasme!) a quantidade de janelas que a casa possuía. Para evitar a cobrança excedente de impostos, as pessoas começaram a construir casas com menos janelas ou a fecharem algumas das janelas já existentes. Em meio a críticas ostensivas da população, o imposto foi derrubado na metade do século seguinte.
Atualmente a cidade passa por um fenômeno parecido. O Reino Unido possui um sistema de planejamento restritivo acima do solo. A cidade londrina impôs limites para a área construída e a altura que as casas podem ter.
Driblando a restrição, no bairro nobre de Kensington, região mais densamente povoada do país, novos bilionários constroem extensões subterrâneas elaboradas. Sem espaço para construir do lado de fora e sem permissão para construir para cima, o caminho encontrado foi descer. A influência da legislação na arquitetura trouxe um novo componente para as ruas mais chiques de Londres: os bunkers de luxo, abrigados sob excêntricas escavações.
É como uma espécie de iceberg. Quem vê o espaço humilde que desponta na superfície, não imagina os porões majestosos que se escondem no subterrâneo. São escavações abaixo de construções em estilo vitoriano e georgiano dos séculos 18 e 19. Estamos falando de verdadeiras mansões embaixo da terra. Algumas chegam a ostentar números nababescos como: 15 quartos, 7 banheiros, piscina, cinema, adega, salão de baile, pistas de boliche e até salas de armas.
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Quem visita Cairo percebe a cidade repleta de prédios cinzas, em um mundo sem cor de construções inacabadas. Mas essa estética é oriunda de um incentivo do governo que acabou sendo interpretado de outra forma pelos cidadãos.
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Na década de 50, de modo a incentivar os moradores a finalizarem as construções de suas casas, o governo da capital egípcia buscou uma solução simples e que procurava beneficiar a população mais pobre: o imposto sobre os imóveis só seria cobrado quando eles estivessem acabados. Assim, o dinheiro economizado serviria para que as obras fossem finalizadas mais rapidamente.
O que aconteceu, no entanto, foi que a população encontrou uma maneira de driblar o pagamento do imposto indefinidamente, mantendo suas moradias constantemente ‘em obras’. A medida foi revista nos últimos anos, o que deve incentivar os donos dos imóveis a terminarem suas casas, mas será difícil mudar a estética da cidade tão cedo.
A cidade de Montreal tem como característica simbólica de sua arquitetura as escadas externas ‘vazadas’, presentes em boa parte dos imóveis. Ainda que a origem maciça das escadas não seja tão clara, o mais provável é que também esteja ligada à legislação na arquitetura.
No século 20 a administração da cidade estipulou uma distância mínima entre os novos prédios e a calçada, limitando o espaço construtivo. Os moradores então, passaram a construir seus imóveis com as escadas do lado de fora para aproveitar melhor os seus terrenos.
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A popularização das escadas também pode ter tido a ajudinha de outras duas leis. Em 1885 o voto só era reservado para homens que possuíssem terra ou locatários que tivessem uma entrada própria para suas residências. Já a explicação para o fato de as escadas serem vazadas pode ser encontrada na legislação de 1869. A lei obrigava as pessoas a terem plantas no quintal de suas casas. As escadas ‘vazadas’ permitiam dessa forma, espaços para o crescimento da vegetação.
Códigos de construção e a influência da legislação na arquitetura foram fatores preponderantes para que nenhum edifício em Washington DC ultrapassasse o Monumento de Washington, com seus mais 169 metros de altura.
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Esse fato se deve a uma lei, promulgada em 1910, que restringia todos os edifícios em Washington DC a não serem mais altos que a largura da rua adjacente, acrescido de 7 metros. Dessa forma, para um edifício ser mais alto que o Monumento de Washington sem violar essa lei, ele teria que estar situado em uma rua com mais de 163 metros de largura.
Tecnicamente, não há nenhuma exigência de que todos os edifícios em Washington DC fiquem abaixo da altura do Monumento de Washington. É por uma restrição da via pública que o memorial construído em homenagem ao ex-presidente norte-americano continua sendo a estrutura mais alta da cidade.
As leis, restrições e necessidades construtivas acabam moldando muito da arquitetura das cidades e as edificações à nossa volta, tanto em forma e estética, quanto em função. O Plano Diretor e a legislação na arquitetura são importantes no sentido de orientar a política de ordenamento e expansão das cidades.
No entanto, não é o que se tem percebido na prática. É como se algumas tendências arquitetônicas nascessem das restrições legais e não da necessidade de inovações e interferências na paisagem urbana.
Por Thaís Ramos
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